A Tertúlia de Ana Júlia – Um Olhar Teológico

Assisti com um misto de encanto espanto e prazer o amoroso, indignado e verdadeiro discurso da adolescente Ana Júlia de 16 anos na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná. Ela nos proporcionou uma Tertúlia juvenil e alvissareira, ao resgatar em grande parte, a dignidade humana, manchada pela desmoralização da política, dos políticos e dos partidos. Para desmoralizar um partido que insistia em ser diferente, os que têm as mãos sujas de sangue se uniram e feriram de morte a democracia brasileira e as instituições, políticas, judiciárias e legislativas. Patrocinada pela demoníaca grande mídia e abençoada pelo seletivo judiciário brasileiro. Com a sua autoridade e coerência, pois estava com o uniforme do seu colégio, Ana Júlia é uma profetiza. Mas, sobretudo com a clareza de ideias, Ana Júlia rearrumou o desarrumado habitáculo de educadores e educadoras. Pronunciou o mais belo discurso político dos últimos tempos. Um dos mais belos que eu já vi. Belo porque bom, por isso, bom e belo. Diante da irresponsabilidade do governo estadual do Paraná, e do arranjo maligno nacional que ocupa o lugar reservado ao governo federal. Era visivelmente chocante o olhar de paisagem arrasada de parte do agrupamento de amigos que legitima a barbárie ética e moral da chamada casa das leis e casa do povo. Bastou o povo enviar uma menina, com caráter e postura de mulher, e dizer livremente a sua palavra, para cair a máscara da desfaçatez dessa pseudemocracia que são os partidos políticos e suas representações nas Assembleias Legislativas e Câmaras de vereadores. Com raríssimas e honrosas exceções, Claro. Eu pude ver algumas destas exceções.

Sim, aquela era uma sessão com pouca participação e o tema interessava a poucos. O ranço da Casa Grande e o vírus cruel do machismo branco e de posses, e a aberração da prepotência não aguentaram nem cinco minutos de verdade verdadeira. Como dizia minha avó, a verdade dói. Logo se viu o primeiro passo dos tiranos. Que é a ameaça. Logo se empunhou a arma da hipocrisia, que são os miseráveis regimentos, feitos para blindar os que mandam e punir os mandados que não obedecem. “Eu vou cortar o microfone! Eu vou encerrar a sessão se vocês continuarem se manifestando”. Disse o representante do Estado sem nem mesmo olhar as próprias mãos. Eles não questionaram o fato de serem chamados de representantes do Estado. A Casa Grande costuma dá quatro passos: a) ameaçar, fazendo tortura psicológica; b) desmoralizar publicamente; c) prender para amedrontar; e d) por fim, quando o teimoso não se rende, eliminar. Felizmente, dessa vez, apesar de vivermos na teoria o estado de direito e na prática o estado de exceção, por enquanto ficou no primeiro passo. Vivemos no Brasil a expressão jurídica chamada de Super Regra, quando a Constituição fica em segundo plano, dando primazia à vontade do ditador e dos interesses de seu grupo. Apesar de estarmos no Paraná, diante da legislatura que será lembrada na história como a “Bancada do Camburão”. Diga-se de passagem, que a menina é muito inteligente! Pediu desculpas e alimentou o ego do opressor, massageando-o. Ganhou tempo e concluiu o seu discurso. Ana Júlia ensinou para todos os brasileiros e brasileiras, o que é liberdade. Sua palavra trazia o sabor, o som e a expressão da liberdade. A verdade tem essa marca teológico-profética forte de libertar os humildes e enfurecer os insanos. Já foi assim com Herodes Magnos que não suportou a verdade de um menino e também cometeu violência. E o governador Pôncio Pilatos também. O sacerdote Caifás, igualmente, fazendo uma interpretação ao pé da letra, classificou a verdade de blasfêmia.

Ana Júlia me fez lembrar com o seu carisma de líder, Hortência, nossa campeã olímpica de basquete. A Rainha Hortência. Aquela respirada profunda antes de arremessar para a cesta é a mesma de Ana Júlia ao reiniciar a próxima frase e elaborar o próximo raciocino. Cesta para a democracia! Cesta para os insubmissos adolescentes e jovens brasileiros. São muitas as mulheres anônimas e subversivas que não se rendem às ameaças regimentais e legalistas. Pude conhecer e conviver e aprender com muitas. Entre elas estão, Janeide Lavor e Ozélia da Silva em Manaus, Valtânia Moura em Picos no Piauí, Ednalva Costa em Teresina e Rosinha Pereira em Pedro II, também no Piauí. Débora Sampaius em Imperatriz no Maranhão. Em Curitiba, no meio familiar posso destacar Lourença Santiago, Claudiana Barreto e Valdevânia de Assis. São mulheres que desde meninas trazem essa estranha marca de ter fé na vida. Como Ana Júlia e sua companheira de fé, Nicole, ambas são símbolos de uma geração de jovens que ocupam mais mil escolas no Brasil. Tendo que suportar durante as madrugadas o terror de um grupo de vândalos de extrema direita que se intitulam Movimento Brasil Livre, com fortes indícios de financiamento por parte de governos e parlamentares reacionários. Tudo isso sob o olhar míope ou cúmplice das autoridades, sejam judiciárias, legislativas ou executivas. E que gostam de criar terror e quebrar tudo nas manifestações pacíficas para incriminar os movimentos sociais.

Muitas mulheres fizeram proezas na Bíblia, é certo que nem sempre mostradas. Muitas vezes, na maioria delas, mudas, sem dizerem uma palavra. Duas de forma especial, Ester e Judite, enfrentaram e venceram os sistemas opressores de seus tempos. Libertaram seus povos das garras da opressão e do inferno da submissão. Para a Assembleia Legislativa o que interessa é cumprir o regimento que blinda seus membros preservando o “Poder” de dominar, de desligar o microfone e de encerrar a sessão. De fazer o que quiser, na verdade. Para Ana Júlia, para Nicole e para o movimento estudantil o que interessa é a educação de qualidade, a escola como lugar de aprender e não de ser humilhada. A educação como prática da liberdade, diria o mestre e humanista Paulo Freire. Nas palavras de Sandro Gallazzi “Oque importa a Assuero é o poder; o que importa a Ester é o povo. Ester só é feliz se o povo estiver feliz” (GALLAZZI, 1987, p 73). O movimento estudantil está revivendo as palavras de um mestre que também foi jovem, insubmisso e rebelde e que disse, “Se eles calarem as pedras gritarão” (Lucas 19 40).

Os opressores, dominadores e algozes dos pobres jamais entenderam como alguém pode amar algo que não seja o dinheiro e o poder. As expressões dos deputados diziam isso. Pareciam dizer que eles não acreditavam em tal possibilidade. Porém, são os pobres, vivendo na pobreza, que aprendem por necessidade, o valor da solidariedade, da partilha e do companheirismo. Essa é a escola das meninas e mulheres citadas aqui. Quem se refugia por de trás das leis de própria autoria, dos regimentos que lhes garantem a zona de conforto da imunidade, no mínimo o famigerado fórum privilegiado, não pode entender esses valores. Como Ester, Ana Júlia foi não apenas a primeira mulher, mas a primeira pessoa a usar a tribuna do palácio do poder, sem está investida de um cargo eletivo e sem a humilhante submissão. Para o Estado que persegue e violenta os professores e as professoras, de quem Ana Júlia disse com rebeldia e segurança que os deputados são representantes, que incrimina os movimentos sociais, fica uma verdade, “A presença de uma perseguição violenta é já o sinal da derrota do perseguidor” (GALLAZZI, 1987, p 123). O faraó de nosso Estado pensa que é Deus, mas como aquele antepassado distante seu que mandava matar crianças, há de suportar as pragas que merece.

Judite também assumiu o protagonismo da história de libertação de seu povo. Falou a sua palavra, trouxe os homens para a sua casa, eles vieram, a casa é da mulher. “Judite toma a iniciativa de convocar para sua casa os encontros de Betúlia” (GALLAZZO, 2001, p 82). Assim, Judite traz presente a memória de muitas outras mulheres. Continua Sandro Gallazzi, “A “casa da mulher” passa a ser o epicentro de tudo o que vai acontecer. Repete-se aqui também, uma das características da literatura “alternativa” do pós-exílio. Foi assim na história de Rute, cujo centro é a casa de Noemi; foi assim com os “aposentos da rainha Ester”. (ibidem). O que temos é o sinal de um novo tempo. A grande mídia, que hoje faz o papel de gigolô, que explora, prostitui e condena. Diz que as eleições foram u não ao PT. Será? Muitas mentes doentes atribuíram ao PT às ocupações das escolas. Quem me dera, que o PT tivesse feito um trabalho de base com essa juventude da geração “barriga cheia” e que conheceu o caminho da universidade. Quem me dera o PT tivesse sido capaz de formar estudantes conscientes o suficiente para ocuparem as suas escolas, exigindo respeito e dignidade. Ana Júlia, que o Deus de Judite, de Ester, de Rute e de tantas Marias, te proteja e te ilumine.

Curitiba, 31 de Outubro de 2016.

João Santiago. Teólogo, Poeta e Militante.
É Mestre em Teologia e Especialista em Assessoria Bíblica.

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