As CEBs e o desafio de ser Igreja Povo de Deus

As Comunidades Eclesiais de Base – CEBs – e o Desafio de ser Igreja Povo de Deus

Bem diz cantando Zé Vicente: “De repente nossa vista clareou. Clareou, clareou...! E é essa a sensação deixada em nós pelo Encontro da Ampliada do Regional Sul2 das CEBs em Maringá nos dias 06 e 07 de abril de 2024. O Centro Social Arquidiocesano Santa Dulce dos Pobres, onde aconteceu o encontro, trouxe-nos grande inspiração. Vivemos intensamente, o Objetivo Geral da Campanha da Fraternidade de 2024, que diz: “Despertar para o valor e a beleza da fraternidade humana, promovendo e fortalecendo os vínculos da amizade social, para que, em Jesus Cristo, a paz seja realidade entre todas as pessoas e povos”. (TEXTO-BASE, 2024, p. 7). A mística nos contagiou e o Espírito nos conduziu. Estivemos em 14 das 18 dioceses, com 38 participantes e as 4 províncias estiveram representadas. A presença acolhedora e profética de Severino Clasen, nos encoraja e nos inspira.

Gosto, especialmente gosto muito, quando os processos organizativos, mobilizadores e celebrativos – assim foi esse encontro da Ampliada das CEBs – são ousados na sua simplicidade, sem esse medo inútil de errar. Gosto quando o convite que recebo é para preparar o encontro, ou para contribuir em sua preparação. A gente se sente valorizado, reconhecido, ouvi de algumas pessoas. A gente se sente gente. Talvez seja esse o ponto de toque que as CEBs precisam sentir e retomar, indo humildemente às fontes, conversando com seus mestres e suas mestras, ouvindo-os mais do que falando-lhes. Talvez seja exatamente essa a mensagem central contida nas sábias, interrogativas e mansas palavras de Dom Severino. “Quais são os desafios das CEBs? Como que as CEBs podem se tornar novamente encantadoras? Inspiradoras? Comunidade Eclesial de Base?”. Primeiro, Dom Severino, reconhecendo que perderam parte daquele encanto, do primeiro amor. Mas também com suas lideranças falando menos e deixando mais as pessoas falarem; escutando mais; escutando mais as vozes das juventudes; aprendendo a ouvir o que não gosta, não concorda e não conhece. Os remédios que mais curam costumam ser amargos, ou costumam não ter um sabor muito agradável. Assim foi este encontro da Ampliada das CEBs. Lembrando o velho e sábio Cícero de Roma, “Sólon, por exemplo, se deleita, em seus versos, de aprender todo dia uma coisa nova, ao envelhecer”. (CÍCERO, 2009, p. 24). Eu também.

Vejam a jovialidade presente em nossos assuntos e em nossas formas de discuti-los! Por que será? Porque as juventudes não foram convidadas para preencher a cota dos jovens nas CEBs, mas para contribuir na preparação do encontro. Helô, Gabi e Francisco, foram brilhantes. Quando Rodolfo Sanches, assessor da manhã do sábado, propõe na Ampliada das CEBs refletirmos e dialogarmos sobre liberdade e igualdade, traz exatamente o impulso que uma comunidade precisa para caminhar para frente. O olho na estrada que se apresenta à nossa frente, com suas barreiras, com suas lombadas e com seus pedágios, mas o outro olho vez em quando olhando para o retrovisor da história, aprendendo com os dois mil anos de caminhada. Caminhada feita de poesia, sim, de esperança sim, de fé sim, mas também e igualmente feita de resistência, de profecia e de martírio. Porque, nas palavras de Marcelo Barros, “No Brasil, Dom Helder Camara, Pedro Casaldáliga e outros pastores colocaram-se como profetas e poetas do Amor Político de Deus”. (TAVARES, 2020, p.20).

As CEBs são portadoras de um jeito de ser Igreja que nele a liberdade não é para punir, agredir ou silenciar o outro a outra, mas para ser diferente. Devemos defender com as nossas vidas se precisa for, o direito de ser diferente. E foi exatamente olhando pelo retrovisor da pedagogia das CEBs que nós reaprendemos com Paulo Freire que, “É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível, que vamos programar nossa ação político-pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização (...)”. (FREIRE, 2000, p. 81).

Diante de nossa realidade de homens e mulheres itinerantes, migrantes e em certa medida refugiados, forasteiros, o padre Manuel Joaquim nos deu uma sacudida no pé da laranjeira. Citando um poeta português, patrício seu, ele nos lembra e nos consola ao dizer que, “A nossa terra é aquela que escolhemos para morrer”. Pois bem, oh pá! A importância reconhecida nas experiências anteriores, a memória feita dos processos vividos na pandemia, as aventuras on-line, tantas novidades para todos e todas nós. Sobretudo, e isso as CEBs não podem se esquecer, nós somos, representamos e significamos hoje, “As Minorias Abraâmicas”, (BARROS, 2022, p. 201), para usar uma expressão de Dom Helder Camara.

A questão hermenêutica é essencialmente urgente para as CEBs, sobretudo a atualização da hermenêutica das CEBs. Afinal, a pluralidade de pensamentos, de teologias e de eclesiologias, sempre unidas pela comunhão fraterna como método e pelo bem-comum, como missão. “Faz-se necessário dizer que já não se pode falar apenas de hermenêutica, no singular, mas mesmo no interior da Igreja e das Igrejas, existe e urge que se dê voz às hermenêuticas, assim no plural”. (SANTIAGO, 2023, p. 23). Por isso, e essencialmente por isso, as CEBs são um jeito novo de ser Igreja. As CEBs encarnaram e deram existenciamento à Igreja Povo de Deus como utopia conciliar. Estas eclesiologias, por vezes, são antídotos para os principais riscos e para as mais fortes ameaças à saúde espiritual da Igreja. Algumas dessas ameaças foram citadas pelo padre Manuel Joaquim, assessor no sábado pela manhã, como: “cismas silenciosos”. São eles: “Os cismas silenciosos em andamento na Igreja são, resistência à mudança; ideologização da fé; funcionalismo; o câncer do clericalismo; a autorreferencialidade também é um cisma sério. O sacerdócio é um serviço”. Disse ele por fim.

É tempo de pisarmos no chão deste tempo e fazer memória do tempo passado. Os nossos mártires e as testemunhas da vida são o nosso mais rico e límpido poço. É deste poço que bebe a Espiritualidade Libertadora. Por isso, não basta mais apenas fazermos encontros que são na verdade, eventos. Nós precisamos nos refazermos com os nossos encontros. Um encontro da Ampliada das CEBs, um Intereclesial, assim como um seminário, seja das CEBs, ou do CEBI, ou das Pastorais, não pode ser um evento com finalidade em si mesmo. Este último encontro da Ampliada das CEBs, confirma essa tese. Nós organizamos o encontro participativamente, nós o executamos coletivamente. Nós o fizemos, mas ele também nos refez. Nós fizemos memória do Oitavo Intereclesial do Regional Sul2; nós fizemos memória do Décimo Quinto Intereclesial das CEBs em Rondonópolis no Mato Grosso; nós relemos o relatório e os encaminhamentos da última reunião da Ampliada das CEBs em Paranavaí. Nós nos renovamos e nos fortalecemos com nossas próprias histórias. Na linha de Dom Pedro Casaldáliga, “Teófilo Cabestrero, Ernesto Cardenal, Fernando Cardenal e Miguel D’escoto nos deram, com seu livro Ministros de Deus, ministro do povo, um dos mais belos documentos de espiritualidade da libertação. Um livro histórico para a vida de nossa Igreja latino-americana”. (CASALDÁLIGA, 2007, p. 33). As CEBs são feitas também e igualmente de bons textos e de bons livros.

As CEBs são uma Igreja em permanente estado de conversão. Ou não serão a Igreja Povo de Deus. Ou não serão CEBs, portanto. As CEBs devem ter uma Teologia Pastoral bem desenvolvida, conhecida e praticada. A Ampliada das CEBs em Maringá nos dias 06 e 07 de abril de 2024, confirma as Palavras se Eduardo Hoornaert, “O objetivo consiste em desenvolver uma teologia, uma pastoral e uma espiritualidade da pobreza”. HOORNAERT, p. 148). E, para conseguir alcançar este objetivo, é preciso denunciar as estruturas de poder que, frequentemente, dentro da Igreja, roubam a Palavra e a voz do povo. “A Pastoral é a escola de conversão da Igreja. Escola de humanidade e de vivência cristã. É por isso que a Conversão Pastoral é o primeiro passo para uma conversão integral da Igreja”. (SANTIAGO, 2020, p. 84). A teologia é a inteligência da pastoral e a pastoral é a ação da teologia.

As CEBs do Brasil terão um desfio à altura de sua história: ser a Igreja pobre, dos pobres e com os pobres, nos mesmos espaços e ao mesmo tempo em que predomina uma Igreja poder. Uma Igreja clericalista, centralizadora, autoritária e educada para ser servida. Não importa. Quanto mais escura é a noite mais os vagalumes se destacam. E as CEBs do Regional Sul 2 têm esses vagalumes. Risoleta Boscardin; padre Miguel; Mara e Cláudio, ambos em Curitiba; padre Jaime em Piraquara; Messias em União da Vitória; Domingos na Fazenda Rio Grande; Helô e Gabi na PJ; Leoni, Rosa e Lúcia em Londrina; Juvilde em Foz do Iguaçu, Lúcio e Souza em Toledo, e muitos outros vagalumes que iluminam as noites escuras do povo de Deus. Como Dom Severino em Maringá; Dom Geremias em Londrina, pastores que têm cheiro de ovelha e vivem sendo atacados pelos lobos. E tem muito mais gente! Vamos fazer cada um, cada uma de nós a nossa lista? É disso que deve se fazer a nossa hermenêutica. De memória e reconhecimento.

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Ressignificar os nossos conceitos e redimensionar os nossos medos. Seguindo mais um testemunho trazido por Dom Pedro Casaldáliga, ao se referir às mulheres indígenas do Panamá, diz ele: “Na secretaria indígena um cartaz referente a um encontro-campanha de mulheres índias proclamava: “Perdemos quase tudo. Agora vamos perder o medo”.” (CASALDÁLIGA, 2005, p. 52). As CEBs também já perderam muito! Em muitas paróquias seus membros não são sequer bem-vindos. Mas o Reino não cabe na Igreja, tampouco numa paróquia. Os desertos também devem ser ressignificados. Na linha do Papa Francisco, “E no deserto existe, sobretudo, a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a esperança”. (EG nº 86).

As CEBs que olham para frente, têm uma eleição muito importante este ano de 2024. Nesta eleição serão eleitos/as prefeitos/as e vereadores/as. Qual será o papel dos membros das CEBs nestas eleições? Agora, os “ateus” e “ateias” práticos que não acreditam no povo e nos esculacham o tempo todo, sem sequer nos conhecer, estarão nas missas, nas novenas e até nas romarias – lobos vestidos de cordeiros – usarão os salões das paróquias, assumirão as festas, as pias e até lavarão a louça. Tentarão de todo jeito se parecerem conosco. Quanto a isso, nós não poderemos fazer nada. Eles encontrarão mais acolhidas do que nós em muitas paróquias. Mas, o que nós falaremos e faremos sobre as políticas sociais? Sobre as questões ecológicas que a maioria deles não está nem aí? Qual é o projeto das CEBs, para garantir via políticas públicas, a dignidade da vida humana e da vida do planeta?

As CEBs do Regional Sul 2 terão em 2026, o Nono Intereclesial que será uma estação para abastecer a nossa locomotiva para a caminhada rumo ao Décimo Sexto, na Arquidiocese de Vitória-ES, em 2027. A reunião da Ampliada nos trouxe muitas lições de metodologia, de teologia e de espiritualidade que nos serão muito importantes frente a estes desafios. Vamos partilhar estas lições? Vamos abrir os nossos corações e os nossos ouvidos para as juventudes? Para as eclesiologias e para as teologias periféricas? Vamos abrir os nossos corações para os pobres? Que tal cada província se comprometer em incluir 09 (nove) jovens nos planejamentos das atividades e como protagonistas na sua execução? Isso não estaria coerente com o desejo da Rainha Esther?, “O meu desejo é a vida do meu povo!” (Est. 7,3). Por fim, façamos memória da profecia cantada de Jorge Trevisol, “Se a juventude viesse a faltar, o rosto de Deus iria mudar!”. Qual é o rosto das CEBs hoje?

Curitiba, 10 de abril de 2024 – Aniversário de dona Francisca, a mamãe.

João Ferreira Santiago
Assessor das CEBs na Província de Curitiba.
Autor do Livro: “Teologia Pastoral – A Arte do Seguimento e do Discipulado de Leigos e Leigas. Entre outros.
Doutorando em Teologia pela PUC-PR, pesquisando sobre as CEBs.
É coordenador estadual do CEBI-PR.

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