Mosaico de Humanidades - Aquarela de Possibilidades

Mosaico de Humanidades – Aquarela de Possibilidades

Vivemos um momento de extrema dificuldade de entendimento, seja na questão das identidades, seja mesmo das diversidades, mesmo que, de várias formas, sejam estes, temas tão falados. Vivemos o discurso da pluralidade, da diversidade, mas prevalece a realidade dos guetos. As identidades, sobretudo as que jamais foram reconhecidas, a saber: dos jovens, das mulheres, dos negros, ou ainda, em algumas profissões como as parteiras e as benzedeiras que têm sua identidade esquecida e às vezes negada ou perdida. Até mesmo a profissão de professor passa por uma crise que parece respingar na educação como um todo, atingindo a sociedade e afetando seus processos. Quando escuto os desabafos, cada vez mais frequentes, de estudantes da Universidade Federal, por exemplo, queixando-se de indiferenças e desumanidades de seus professores, fico engasgado. “Fui reprovado, por um décimo, perdi um semestre e não pude nem conversar com o/a professor/a”, uns me dizem com frequência. Às vezes ainda ouço de outros, “O/a professor/a disse várias vezes durante o semestre, duvido que alguém passe direto em minha matéria!”. É a pedagogia do medo e da arrogância. Eu fico pensando: isso porque, em tese, estamos falando de Servidores/as Públicos. Depois, me pergunto: para o que ou pra quem serve tais comportamentos? Que tipo de resultado se espera dessas relações que poderíamos, tranquilamente, classifica-las de, “Eu X isto”. É mais frequente, contudo, ouvir dizer que os estudantes são mal educados, que não respeitam os professores, que não querem saber de nada. Isto, no entanto, já se dizia na Grécia três mil anos antes de Cristo. Apesar de que as pessoas dizem isso ainda hoje, como se tivesse acabado de inventar a frase. É verdade que às vezes há violência também do outro lado e também não se justifica.

De qualquer forma, vivemos um período por demais confuso. É o digital quem manda nos processos sociais, mas ainda é o analógico que funciona na maioria das ideias e dos processos humanos. É o chip quem se impõe com sua magia espacial, fazendo caber o Sol dentro da Terra, mas ainda é o papel que funciona na prática de nosso dia a dia. É o futuro quem é cantado em prosa e verso, tudo o que se faz ou se deixa de fazer diz-se que é em nome dele, mas é o passado nosso grande mestre. E aqui, é mestre mesmo, não é professor. Mesmo eu tendo um respeito e uma admiração enormes pela palavra professor. Conheço professores e professoras vocacionados/as, que vivem o que ensinam, que acreditam no que dizem, que dialogam com seus parceiros de aprendizado, o que os outros chamam de alunos. Mas é uma minoria e vivem escanteados e às vezes diabolizados pelos corporativismos que muitas vezes fazem da estabilidade, fruto de muitas lutas e conquista de uma época, um privilégio. Tudo isso, afinal, é pensado, feito e vendido a partir do eu, mas é o outro que comigo forma o nós. E este mosaico multicor, que é a vida, em suas variadas formas, é feito por nós.

Este mosaico, que às vezes mais parece uma aquarela, a vida quer ser assim, se faz grafite, feita de arte reprimida, negada na sua essência, mas cheia de expressões. E outras vezes, até vira pichação, revolta de quem tem seu grito abafado, expõe para o nosso tempo, certa abundância do óbvio. É o que tento dizer numa das poesias de meu novo livro, lançado em Curitiba, na Comunidade São Sebastião, neste último Sábado, dia 08 de Fevereiro de 2014. São os desafios quase impostos a nós e ao nosso tempo.

Democratizar a democracia, estatizar o Estado, evangelizar as Igrejas, humanizar o humano, politizar a política, justiça justa, organizar a sociedade organizada, movimentar os movimentos, amar o amor, sonhar um sonho bom, educar para a liberdade, diálogo ecumênico, lutar com garra, querer querendo, fazer de fato.(1)

É, também, o que de certa forma, até por uma questão de bom senso, tenho assumido com relação ao BBB, que é o cenário de legitimação da disciplina de besterologia, ornamentado por banalizações e apelações fúteis. Que nada tem que ver com arte ou com Inteligência. Isto eu não posso negar. Mas esta disciplina de besterologia compõe grande parte das grades curriculares de muitos dos cursos de graduação. Quando não está explícita na grade aparece implícita na metodologia ou na forma de conduzir as aulas. E para não ser injusto, é frequente vê-la também nos processos de mobilização e organização popular. E especialmente em alguns editais de contratação. Aonde também se veem provas de líder com as mesmas aberrações, paredões com métodos semelhantes de segregação, individualismos e manipulações incríveis. Será que é assim mesmo que se constrói uma democracia? Tomara que seja. Pelo menos a gente está no caminho certo. Tem gente que chama isso até de Educação Popular. Mas, voltando ao BBB, que é chamado também de comunidade, tenho sido menos rigoroso com ele, por essas situações. Ele me despertou para certa mediocridade que perpassa boa parte das relações familiares, religiosas e sociais em nosso tempo. Em certo sentido, sem generalizações, ele imita mal e porcamente, a vida como ela é, em determinadas situações. Já estive em lugares, que também se chamava comunidade, e não tive estômago para ficar lá. Convivi com pessoas que abominam o BBB, mas parece, com isso, apenas quererem sublimar o desejo, para elas irrealizável, de participar dele. É assim que acontece com o lado sombra do ser de luz, chamado ser humano. Na vida real elas fazem coisas que invejariam os “heróis” e as “heroínas” do Pedro Bial. Nada disto diminui as más referências e o impacto de uma “ideologia” como a do BBB, na formação de uma geração.

A naturalização da violência, da impunidade, a absolutização do sentido religioso, da sexualidade e a mercadorização da vida, por fim, tem feito com que, programas de humor apelativo, sejam confundidos com programas jornalísticos. E, por consequência, humoristas sem perfil e sem vocação, bestas que buscam apenas audiência a qualquer custo, sejam confundidos com jornalistas. São “rolezinhos” virtuais que reduzem a cultura a um entretenimento de gosto duvidoso. Meu “ROLÊ”(2) é feito de Reunião, gosto de reunir pessoas e de reunir-me com elas para uma boa conversa; de Oração, porque também gosto de ir além do óbvio, daquilo que se explica e que se entende. Prefiro as perguntas às respostas. Gosto de Ler, o terceiro componente indispensável a meu “ROLÊ”. Ler a vida, ler o mundo, ler as relações, para depois poder entender o sentido das palavras, das letras e dos textos. E, por fim, gosto de Escrever. E escrever aqui também é mais que o simples fato de escrever em si. E que escrever poesia, apesar de ser um de meus prazeres. Gosto e me satisfaço sabendo que escrevo, sobretudo, a história. Sinto ser esta a grande frustração dos “Rolezinhos” dos BBBs e dos “revolucionários” de gabinetes, que vivem confundindo amenidades com algo inédito. Dos meios de comunicação que geram programas simplesmente para absolutizar a violência. Com a intenção clara de continuar culpando os pobres por sua pobreza e convencendo multidões que os violentados são violentos. Aí, com seus anjos da morte, no Parlamento e nas Côrtes, defendem a redução da maior idade penal com solução para a violência. Usam seus autofalantes para defender a necessidade urgente de transformar manifestação popular em crime hediondo, em terrorismo. É o reinado do eu e dos interesses individuais ou de minorias hibernando em suas zonas de conforto. É isto também que faz com que as pessoas se viciem a cargos, sobretudo públicos, porque na iniciativa privada, talvez nem fossem selecionados. Seu sonho é ser “funcionário público”, porque ser servidor público é besterologia para elas. Coisa de sonhador. Fazer diagnósticos e “profecias”, a partir de gabinetes, com ar condicionado, com salários generosos, sem ter que prestar conta de nada nem pra ninguém. Idealizando algo que só passa nas elucubrações de quem as faz, é um bom jeito de auto enganar-se, mas não muda nem contribui para mudar o mundo. Talvez falte vocação, quem sabe a gente poderia tornar obrigatória à disciplina de “Perfil Vocacional”. Ela substituiria uma das disciplinas de besterologia. Qualquer uma delas. Aliás, nós poderíamos, inclusive, usar o esporte como exemplo de vocação. O futebol, por que não? Estou certo que nos surpreenderíamos com tantos exemplos de vocação, onde a determinação, a busca de um ideal e a capacidade de desafiar-se, inspirariam muitos servidores públicos. Vou citar um exemplo recente, que é o atleta Túlio Humberto Pereira Costa, o Túlio Maravilha.

Nascido em Goiânia, no dia 02 de Junho e 1969, depois de passar por mais de uma dezena de clubes brasileiros, por vários times no exterior e pela seleção brasileira, onde deixou bem a sua marca, desafiou a si mesmo a atingir a marca dos mil gols. Para alcançar seu objetivo não mediu sacrifícios, se expôs, foi tido por muitos como ridículo, pavão, querer se autopromover, nada disto o intimidou. Visto pela janela de quem não sabe o que é vocação, amor pelo que faz, ou autodeterminação, humilhou-se até, mas conseguiu. Onde muitos viam humilhação, ele via desafio. No dia 08 de Fevereiro de 2014, na sua estreia pelo Araxá, contra o Mamoré, em partida válida pelo campeonato mineiro, módulo II, de pênalti, assim como Pelé e Romário, Túlio marcou o seu milésimo gol. Este campeonato é equivalente ao que se costuma denominar de segunda divisão. Quando esta for a marca dos servidores públicos, das lideranças sociais e religiosas, de todos os que governam cidades e Estados, marcaremos também nosso milésimo gol. E será o milésimo gol coletivo. Acabaremos com a miséria, com a exploração do ser humano, com o trabalho infantil, com o tráfico de pessoas e órgãos humanos, com a corrupção e a impunidade. Conheço alguns professores assim, vocacionados, determinados, que não desistem nunca! Conheço também alguns servidores públicos de outras áreas, assim, mas ambos são poucos. Mesmo aos quarenta e cinco anos, perguntado se pararia aqui, Túlio respondeu mais ou menos assim: “Não sei, depende dos clubes, da torcida, do futuro. Por que se contentar com o terceiro lugar se você pode conquistar o segundo?”. O primeiro, no entanto, ele parece saber que pertence a Pelé. Assim como ele também parece saber que por melhor que ele seja como atleta e vocacionado, não é, porém, um Menino da Vila.

Nosso mosaico se completa aqui com algo paradoxal. Começamos falando de falso jornal e de falsos jornalistas, findaremos essa reflexão falando de verdadeiro jornalista, ou profissional da imprensa. Às vezes penso que estamos numa espécie de travessia. Do querer ser ao ser? Do quase não ser ao querer ser? Do ser ao mostrar-se ser? Não sei, mas o fato é que temos enormes dificuldades de entender até o que queremos. Se agente não sabe o que quer, ou não sabe dizer o que quer, acaba tentando conseguir isto que não sabe, de uma forma que não gostaria. A falta de referências na sociedade atual faz da conjuntura um mosaico social de difícil leitura.

Tenho acompanhado as notícias da morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, sendo anunciada a sua morte encefálica no dia 10 de Fevereiro de 2014. Santiago foi atingido na cabeça por um rojão, enquanto fazia imagens das “manifestações” contra a tarifa de transporte público no Rio de Janeiro, para a Rede Bandeirantes de Televisão onde trabalhava. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, o cinegrafista chegou em coma ao hospital municipal Souza Aguiar. Ele sofreu afundamento do crânio, perdeu parte da orelha esquerda e passou por cirurgia no setor de neurologia. Ouvi no rádio que seus colegas de trabalho e de profissão, o chamavam Santi, é assim que meus colegas de trabalho me chamam também na Secretaria Municipal do Trabalho e Emprego – SMTE - em Curitiba. Ouvi e li que sua filha, Vanessa Andrade, 29 anos, aos quinze anos disse-lhe que queria ser jornalista também. Ele reagiu imediatamente, dizendo, “Não, filha, essa é uma profissão que paga mal e é ingrata”. Mas ela lhe respondeu: “Eu quero usar o teu sobrenome, pai”. E ele sorriu e disse: “Assim pode”. Tudo isto me faz pensar no sentido de ter uma profissão e de exercê-la com dignidade, paixão e vocação. A necessidade de garantir cada vez mais oportunidades para a juventude desenvolver seus talentos e descobrir sua vocação profissional.

Imagino que a Vanessa tenha encontrado motivação para ser jornalista vendo a forma como o pai exercia essa profissão. Outro aspecto importante deste triste episódio que culminou com a morte de Santi, foi parte do relato de Vanessa sobre a despedida do pai. “Conversei com meu pai, fiquei à noite com ele, prometi-lhe cuidar de minha mãe e de meus avós. Eu sou Vanessa Andrade, tenho 29 anos e os anjinhos do céu acabam de ganhar um pai”. O depoimento de Vanessa é mais que a expressão de uma filha emocionada. É um testemunho de um pai que soube ensinar o essencial para a filha. Cuidar da mãe e dos avós. Certamente Santiago tem muita alegria com a filha que deixa neste mundo. Tenho me preocupado desde muito cedo com mundo que deixarei para meus filhos e netos, mas tenho me dedicado também e igualmente ultimamente em cuidar dos filhos que deixarei para este mundo. Meus filhos, pelos homens que são, me fazem crescer essa esperança. É preciso lutar para que a morte de Santiago não seja usada para fortalecer os interesses nada democráticos, tampouco defensáveis, das estruturas de “comunicação” de nosso país. Mas que, ao contrário, possamos discutir com fraternidade e interesse coletivo, a dignidade das profissões e dos profissionais. Sejam da imprensa, ou da saúde, ou da educação, ou do transporte, ou da construção civil, ou de qualquer outra área. Que tal as grandes Redes de televisão, as Universidades, as escolas, as Religiões e as entidades sociais e de Direitos Humanos, abrirem espaço para discutir com profundidade e serenidade a vida, a justiça e a paz? Qual é a influência nisto tudo, da própria imprensa, absolutizando a violência na programação, muitas vezes culpabilizando às vitimas, sobretudo, quando elas são jovens e anônimas?

Escrevi um texto, publicado no sítio da PJMP, www.pjmp.org no dia 29 de Junho de 2013, intitulado, “Não se parece com nada que eu acredito”. Lá falo de meus motivos de não acreditar naquele tipo de “manifestação” sem causa concreta, sem líder e sem motivações que me levasse a as defender e participar. Alerto, inclusive, para a precipitação lançada dizendo que o “Gigante acordou”. Será? Que gigante é esse e o que significa acordar? Além do mais, os gigantes costumam fazer menos mal dormindo. Hoje, a Amanda, minha neta, faz sete anos. O mundo que eu sonho para ela e para o Eduardo seu irmão, é o que eu quero ajudá-los a construir. E não se parece com esse que vemos retratado aí nas “maniquebrações”. Não se parece mesmo!

Curitiba, 13 de Fevereiro de 2014.

João Santiago. Teólogo, Poeta e Militante.
Mestre em Teologia pela PUCPR.
É autor do livro: “Gamela de Pedra” entre outros.
[email protected]
(41) 9865-7349 TIM 8489-4530 OI.

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(1) João Santiago. Livro “Gamela de Pedra”. São José dos Pinhais-Pr: Talher Gráfica e Editora, 2013, poema “Mais que redundância”, p 41. [email protected]

(2) ROLÊ: Reunir, Orar, Ler e Escrever. Talvez esses sejam, de certa forma, os mesmos componentes que formam os “rolezinhos” da juventude trabalhadora que estuda e não tem espaço de lazer, não tem acesso à cultura, tampouco pode produzir cultura. Como não pode consumir é discriminada nos espaços de consumo. Ainda correm os riscos das infiltrações criminosas.