Reinventar o passado, recriar a utopia

REINVENTAR O PASSADO – RECRIAR A UTOPIA

 

“Só abrem novos caminhos os que teimam em reinventar o passado”. (Agenor Brighenti)

 

Temos um velho hábito de relativizar, ignorar, quando não esquecer o passado. Este, geralmente só é lembrado, visitado e até aceito, quando somos abatidos por certa melancolia, saudosismo ou quando o presente é sem graça e o futuro parece ainda mais incerto que o normal. A militância revolucionária, a luta coletiva, a capacidade de acreditar que é possível transformar realidades adversas, sobretudo, a Educação Popular, nos levam mais adiante. Ao não fragmentar a história, ou negá-la, nem dicotomizar a vida, dividindo-a em um passado que simplesmente passou; um presente que nada deve a este; e um futuro absolutamente imprevisível, quando não predeterminado. Por saber ser o passado feito e composto de nossa história e fonte de permanente aprendizado; por saber ser o presente o reinventar dessa história e desse passado; e o futuro conseqüência direta do que fizemos ou deixamos de fazer. Por isso a análise de conjuntura; por isso o planejamento; por isso a avaliação; por isso a esperança e a utopia. Por a necessidade de recriar permanentemente o passado, a esperança e a utopia.

 

No livro, “Reconstruindo a Esperança” Agenor Brighenti elenca dados, constatações, reflexões e conceitos fundamentais para quem acredita e parte dessa visão de mundo e de ser humano. Logo na introdução, diz: “Hoje é muito mais difícil planejar do que ontem”. (Pg.5) O que parece querer dizer que a complexidade da sociedade moderna e da vida nesta sociedade tornou mais exigente, e também mais complexos os processos de vida. Mais adiante, ainda na mesma página, ele retoma: “Do encanto pelo planejamento dos anos 70, passou-se ao desencanto dos anos 90”. Essa constatação poderia ser feita também com relação à análise de conjuntura. Agenor, como é constante em todo seu livro, rega de esperança o leitor (a) quando diz ainda na mesma página: ”As crises, apesar de doloridas, quando assumidas com olhos voltados para um futuro melhor, são sempre fecundas e anunciadoras de novas conquistas”. Nada melhor de ouvir e acreditar em tempos de crises como este.

 

Ainda na introdução, continua profetizando: “As metodologias não são neutras e, portanto, não é qualquer uma que é apta para projetar a ação da igreja de acordo com as necessidades de seu contexto”. (Pg. 6). Apesar de dirigir-se à igreja, não seria nenhum desvio empregar seus termos a qualquer movimento social. Mais adiante ele qualifica sua metodologia: (...) “Metodologia Participativa”. E segue profetizando. Fala da igreja, mas serve para o mundo: “Antes de significar uma burocratização da pastoral, o planejamento precisa ser transformado em instrumento eficaz, capaz de ajudar a igreja a ser sinal do Reino num mundo marcado por uma crise de fraternidade e solidariedade”. Estas são mais que simples qualidades. São valores, carências necessárias e raras de se verem vividas, inclusive na igreja. Na mesma página 6 ele justifica sua proposta metodológica de forma muito apropriada: “A partir do que tem de melhor – a metodologia participativa, com as devidas adequações e correções -, é preciso tornar também as comunidades eclesiais de base em protagonistas da mudança”. (...) “Não é possível que, mais uma vez, a igreja vá perder o bonde da história, privando o evangelho de seu potencial profético e transformador”. Quantas vezes nós privamos nossa ferramentas, nossos instrumentos de transformação social de suas reais potencialidades?

 

“A melhor forma de sair da tempestade é eleger um rumo, pois não há vento favorável para quem não sabe aonde chegar”.

 

A belíssima introdução de Agenor termina como começou. Esperançosa e cheia de fé. (...) enche de entusiasmo e motivação seus leitores e aponta-lhes perspectivas que raramente se vêem. Sem fugir da realidade concreta. “Sobretudo a experiência e convicção de alguém que crer no planejamento como um instrumento privilegiado na projeção de um futuro crescentemente melhor, em meio a um mundo mergulhado na desesperança, em que a igreja está chamada a ser, quem sabe, o último reduto da utopia”. Não é a desesperança do mundo ou de alguns desesperados que nele vagueiam que deve ser a bússola dos(as) revolucionários(as), mas as possibilidades e clamores muitas vezes escondidos entre os desafios.

 

Ao fazer a relação dialética entre o encanto e o desencanto que envolve o planejamento, também aprendemos muito com a reflexão de Agenor. “A melhor forma de sair da tempestade é eleger um rumo, pois não há vento favorável para quem não sabe aonde chegar”. (Pg. 9) De fato, além de fazer parte da sabedoria popular e milenar, continua valendo como verdade. Como ns diz tão bem William Shakespeare, “para quem não sabe onde quer chegar, qualquer caminho servr”. “Diante disso, a atitude mais insana é a apologética, ou seja, atacar o novo que se está gestando e defender com unhas e dente o de sempre, o que já deu certo, com o risco de continuar a responder a perguntas que ninguém mais faz”. (IBIDEM) Essa é a regra. Parece ser mais fácil encontrar alguém contra algo novo, por ser novo, que alguém com coragem suficiente de reconhecer o velho, sua validade na tradição que ele carrega, mas olhar pra frente. (...) “Isso só é possível abrindo mão de falsas seguranças e tirando as lições das transformações em curso para a tarefa de uma evangelização na perspectiva da inculturação do evangelho”. (Pg. 10)

O resultado de um mundo globalizando e globalizado, de um modelo de desenvolvimento pensado parte um terço da humanidade, à custa da dignidade dos outros dois terços, parece ser bem dito, na reflexão sobre as ciências. (...) “Por outro, a ciência, à medida que foi superando o conhecimento ingênuo e empírico, orgulhosa de suas possibilidades, desembocou na pretensão da objetividade total ou da verdade absoluta (cientificismo), enveredando pelo beco sem saída da instrumentalização técnica da razão (razão tecnocrata). O fato é que, historicamente, as ciências estiveram muito mais próximas do poder do que da verdade”. (Pg. 13/14). Como tenho dito com freqüência, nas discussões que faço, nos grupos que faço parte, quando vemos, sobre tudo a exclusão e injustiça que geralmente acompanham a ciência. Ela está a serviço de quem tem dinheiro e pode pagar e não de quem dela precisa e tem direito. Isso implicaria aceitar que todo conhecimento é, não só patrimônio, mas conquista e direito, portanto de toda humanidade. Não deste ou daquele laboratório, desta ou daquela empresa.

 

“Comunidade que não faz as pessoas serem mais gente, mais felizes e mais solidárias é apenas aparente, é anticomunidade, sem sentido, sem nada”.

 

O professor Brighenti, vai ao cerne da questão quando aponta a postura da ciência no campo das pesquisas. Alem de excluir a maior parte da população de suas descobertas o investimento é sempre feito no acúmulo de novos conhecimentos, e não em políticas públicas que façam chegar a elas tais benefícios. Diz ele: “Os avanços tecnológicos e o

progresso econômico não são socializados, mas investidos em tecnologias mais avançadas, levando à crescente concentração da renda e conseqüente aumento da pobreza e da exclusão social”. (Pg. 16). Fica, contudo o alerta que nos faz o professor, a partir de uma expressão também muito conhecida nas expressões populares: “A história é a mestra da vida, mas com a condição de sermos capazes de aprender dela”. (Pg. 18).

Seremos nós capazes de aprender das experiências vividas? Até que ponto? Sobretudo, nas conquistas sociais no campo da ciência, da tecnologia, da medicina especificamente, isto tem sido uma contradição a partir das políticas públicas. “Basicamente, há três diferentes percepções ou visões que resumem as distintas maneiras de situar-se no mundo. Mas somente uma delas pode capacitar-nos hoje a construir o amanhã”. (Pg. 18). Diz o Brighenti, são elas:

 

1) Visão catrastófica da realidade: é a atitude daqueles que, diante da complexidade, da dificuldade e dos grandes desafios de seu meio, acham que tudo está perdido, que não há saída;

2) A visão retrospectiva da realidade: está marcada por atitude de medo do novo e, portanto, fundada sobre uma consciência eminentemente conservadora, que fossiliza a tradição;

3) Visão prospectiva da realidade: está marcada por atitude otimista, mas ingênua, pois a consciência crítica a leva a estar sempre com os pés no chão. (Pg. 19/20)

 

Numa crítica lúcida e explícita à desesperança neoliberal e seu fatalismo histórico, o professor Brighenti dispara seus torpedos com precisão: “Se de fato chegou o ‘fim da história’ e só nos resta a ‘ditadura do presente’, ou se o futuro é a volta ao passado, então não há espaço para o planejamento. Como processo de reflexão essencialmente voltado para o futuro, planejar é criar utopias desde os desafios do presente a serem superados”. (Pg. 21). Faz toda a diferença se vemos o planejamento não só dessa forma, mas com esse significado. O que nos implica pensar o planejamento como um ato coletivo, Planejamento Participativo – como ousamos sonhar na RECID – assim vêm às exigências: “Ora, se não cremos numa igreja comunidade, sinal e instrumento de um Reino de fraternidade, não há lugar para o planejamento, pois planejar é crer no discernimento comunitário, é fé na força da união e da superação da fragmentação.” (Pg. 23). Se substituirmos “Igreja” por Sindicato, Associação, ONG, Rede, Entidades, continua valendo o que o autor diz à igreja.

 

O que frequentemente se faz é confundir planejamento com fazer planos pontuais e reduzí-lo a um arranjo de interesses ou repetição de práticas velhas e caducas. “Confundiu-se planejar com elaborar planos, que, em não raras ocasiões, nem saíram do papel, esquecendo-se que planejar, é mais uma atitude do que um ato e o plano é um simples meio, e não m fim e mais, um meio não neutro”. (Pg. 25). O principal mal que costumamos ver se repetir, na igreja ou nas entidades, sobretudo nos planos com caráter de planejamentos é a inversão de importância e a troca de papéis. Esquece-se que são as pessoas quem fazem as entidades e não o contrário. (...) “Em nossas experiências de planejamento participativo, muitas vezes o institucional e o ‘comunitário’ são tão hegemônicos nas relações interpessoais, que sufocam a subjetividade, pondo as pessoas em função das estruturas”. (Pg. 27).

 

“Planejar é pensar a ação, prever, projetar o futuro. O plano é apenas o registro das decisões tomadas no processo de planejamento”.

 

O pragmatismo e o ativismo, mesmo o desvio de finalidade também não muito raro, tentam e até conseguem ‘naturalizar’o uso equivocado do papel comunitário de uma entidade popular. “Comunidade que não faz as pessoas serem mais gente, mais feliz e mais solidária é apenas aparente, é anticomunidade, sem sentido, sem nada”. (Ibidem). Contudo, as experiências já acumuladas de nossas entidades e comunidades nos ajudam a ver a superação deste desafio. “Isso só será possível pondo o institucional e as estruturas em seu devido lugar, isto é, em função das pessoas e da missão da comunidade”. (Ibidem).  Essa é uma pergunta que precisamos nos fazer daqui pra frente. Nossas entidades colocam suas estruturas a serviço e em função das pessoas?

 

A relação dialética entre o micro e o macro, entre a teoria e a prática, ação e a reflexão, tão bem fundamentados e defendidos por Paulo Freire em sua obra, é aqui visto como um risco, um perigo, quando dicotomizada, apesar de uma necessidade por Brighenti. “Os que se abrirem ao macro, sem identidade, serão devorados e eliminados pelo mais forte. Mas os que se confinarem ao micro, ainda que seja a sua própria originalidade, breve serão sucata histórica irreconhecíveis no concreto das particularidades em diálogo e ineptos para uma convivência enriquecedora no concreto dos povos”. (Pg. 31). Bela advertência e constatação do professor Brighenti. Excelente lição. Apenas parafraseando o texto bíblico: quem tiver ouvidos ouça. Quem tiver olhos veja.  Ainda com relação ao planejamento, sempre tendo – o como uma especificidade humana, acrescentar, “Planejar é pensar a ação, prever, projetar o futuro. O plano é apenas o registro das decisões tomadas no processo de planejamento”. (Pg. 33).

 

Quando vemos o procedimento, a postura de muitos ditos Freireanos, quando assumem um cargo público ou de decisão, geralmente com postura arrogante e corporativista, vem-nos o pensamento: se Paulo Freire chegasse aqui agora, o que diria? Assim, Brighenti questiona a igreja, repetindo a interrogação tão ouvida nas pastorais, grupos de reflexão e missionários: “Em outras palavras, se Jesus viesse hoje, não mudaria o conteúdo de sua mensagem, que é transcultural; mas certamente se utilizaria de outros meios e de outros recursos para levar a cabo sua missão, que são sempre dependentes da cultura em que se está”. (Pg. 42). Paulo Freire insistia muito, inclusive quando da fundação de um instituo com seu nome, que se fosse para repeti-lo, não o fizesse. Mas se fosse para reinventá-lo, aí sim teria sentido. Porque homem, humano, curioso, sempre fazia novas perguntas, que o levavam a um sempre novo caminhar. “O mais importante é não ignorar as novas perguntas dos novos tempos. ‘O que não é assumido não é redimido’, diziam os padres da igreja”. (Pg.43).

 

“Partir da realidade é partir de onde se está, e não de onde gostaríamos de estar. Do contrário não se gera processo”.

 

Ainda na perspectiva de que o que vale aqui, na visão do professor Brighenti, para a igreja, vale também para os movimentos sociais, inclusive certo anacronismo, reforçamos: “Qualquer resposta a perguntas que ninguém mais faz torna velha e obsoleta a evangelização, assim como impertinente e irrelevante a própria boa nova, que deveria ser sempre ‘salvação para nós hoje’, como diz o concílio”. (Pg.44). Assim, seguindo a coerência de raciocínio, elencando as exigências do planejamento, vejamos: “Mais importante do que planejar é como se planeja. O planejamento pode ajudar ou atrapalhar a igreja, dependendo do uso que se faz dele”. (...) “A esse respeito, poderíamos evocar três exigências básicas:”. Diz o professor Brighenti.

 

a) Ter os pés no chão:

            Um bom processo de planejamento, para poder ajudar a igreja a encarnar-se e inculturar o evangelho, exige de seus participantes inserção na própria realidade. Planejar é, antes de tudo, não ignorar. (...) Partir da realidade é partir de onde se está, e não de onde gostaríamos de estar. Do contrário não se gera processo.

 

b) Ter os olhos no horizonte:

            Visto que planejar é prever a ação futura, o planejamento implica, sim, ter os pés no chão, mas também olhar longe. Não há autêntico processo de planejamento sem esperança, sem confiança na possibilidade do futuro desejável. (...) Como já frisamos, uma visão catastrófica da realidade, ou mesmo retrospectiva, inviabiliza qualquer possibilidade de um processo de planejamento.

 

c) Ter a coragem de “sujar” as mãos:

            Num processo de planejamento, os pés no chão e o olhar no horizonte precisam cruzar-se com as mãos. (...) Dito de outra forma, está o axioma popular: o que eu ouço, esqueço; o que eu vejo, recordo; o que eu faço, eu sei. (Pg. 45/6/7).

            Planejar deve fazer parte da ação. Parece ser o que nos quer dizer o professor Brighenti. Por isso, deve ser feito por quem o vai executar. A cabeça pensa o coração organiza e as mãos executam. Sempre em parceria. “Num processo de planejamento, é preciso ter a coragem de ‘sujar’ as mãos. É o preço do exercício da liberdade, condição para criar o novo, para avançar, para ser protagonista da mudança”. (Pg. 48)

            É comum e mesmo freqüente confundirmos conceitos e usá-los equivocadamente. Confundimos manifestação religiosa com fé; confundimos educar com doutrinar; confundimos direito com necessidade, quando não com favor e esmola. “A unidade confunde-se com a uniformidade. Todo dissenso é visto como atentado contra a autoridade, desobediência e rebeldia”. (Pg. 52). Não é demais lembrar que, geralmente, qualquer crítica a boa parte das lideranças, parece ser uma ofensa.

            O planejamento estratégico surgiu no âmbito da administração de empresas nos Estados Unidos, ainda que o termo, “estratégia” venha do mundo militar. Ele designa a disponibilidade de forças no campo de batalha para derrotar o inimigo e Ganhar a guerra, uma tarefa de planejamento reservada aos generais do estado-maior. (Pg. 53)

            É preocupante ver prevalecer ainda o improviso. Planejar é ainda um desafio, quando não uma ofensa. Seja no âmbito das igrejas, dos governos, ou da própria sociedade, através das entidades sociais. O planejamento é deixado em segundo plano e quando existe é de forma superficial. “Ora, planejar é essencialmente prever, projetar o futuro desejável e pensar nos passos em vista de sua consecução”.  (Pg. 59).  A conseqüência de não planejar é, entre outras, a de não sabermos também o que é essencial e separá-lo do que não é. “Ora, a identificação de um problema fundamental leva a causas fundamentais. E causas fundamentais e causas secundárias devem receber tratamento diferenciado”. (Pg. 61). (...) “A originalidade do método participativo está em partir da ação para novamente desembocar na ação, privilegiando, entretanto, o processo participativo em relação aos resultados”. (Pg. 62). O processo, aqui citado com relevância, é frequentemente usado para justificar práticas contraditórias. Para esconder omissões e incoerências.

 

“Elas (as ciências) libertam a igreja do fanatismo, do fundamentalismo e da mitificação”.

 

Planejar exige em primeiro lugar que se olhe para as condições efetivas que se dispõe. É, portanto, hora de prevenir muitos possíveis problemas. “Antes de começar a programar, é preciso saber exatamente com que se conta e com que se poderá contar na realização da ação futura, em termos de meios financeiros, humanos, institucionais, didáticos, etc.”.  (Pg. 64) isso significa ver os erros antes que eles aconteçam. Evitá-los, portanto. “Avaliar os erros depois que eles aconteceram não é tudo. É preciso procurar evitá-los. E, para isso, está o seguimento ou controle a ser feito, sobretudo pelos responsáveis das atividades programadas”. (Pg.65)

 

Programar ou fazer um programa, planejar é necessariamente, definir responsabilidades.

 

Brighenti define três momentos importantes no planejamento e dois fazem parte de toda ações humanas. O contexto e o horizonte. “O terceiro momento é a intervenção na realidade propriamente dita, com a finalidade de adequá-la ao ideal proposto, seja de transformação, seja de conservação”. (Pg. 67). Na mesma página, citando a tríade – Ação-Reflexão-Açao – em sintonia com o – Ver-Julgar-Agir – da ação católica. “Se partirmos do VER, o processo do planejamento pode levar a uma visão socializante do JULGAR e politizante do AGIR, desde que a realidade que determina a formalidade ou a pertinência do método”. (Pg. 68). VER analiticamente, JULGAR teologicamente e AGIR pastoralmente, diz Brighenti. (Pg. 70)

 

Momento importante, e muitas vezes confundido, causando prejuízo ao planejamento é a hora de construir consensos ou unidade. “A unidade se faz não em torno das mesmas ações, mas dos mesmos objetivos, embora até estes precisem ser sempre elaborados de acordo com as particularidades de cada nível eclesial”. (Pg. 72). Nunca é muito repetir que vale para qualquer nível de ação e não só para o ambiente da igreja. Principalmente, concluímos do raciocínio do autor, que vale para a academia e para as pesquisas acadêmicas. “Alias, se há um espaço privilegiado de diálogo com o mundo, ele é proporcionado pelas ciências”. (...) “Elas libertam a igreja do fanatismo, do fundamentalismo e da mitificação”. Em seguida mais um alerta a uma freqüente contradição vivida nos processos como um todo. “O método, deliberadamente, privilegia o processo sobre os resultados, a participação sobre a eficiência”. (Pg. 73).

 

“As condições previas e os passos preparatórios de um processo participativo dependem das condições e das circunstâncias de cada contexto”. (Pg.77)

 

A dicotomização entre a teoria e a prática, também facilmente encontrável, já referenciado neste trabalho, é mais uma vez citado. “Para fugir do academicismo, o mais comum é supor o marco referencial, e então facilmente se inventam objetivos, que, depois, ‘não pegam’ e dos quais ninguém se lembra no momento de agir”. Isso nos lembra a idéia também já presente aqui de maquiar, idealizar a realidade e confundí-la com a realidade concreta. “Termina-se o processo de planejamento e, em lugar de começar a agir conforme o novo plano, imprime-se o plano e faz-se uma festa de encerramento, transmitindo a sensação de que a tarefa acabou”. (Pg. 74). Impossível não lembrar a postura eleitoral que tanto criticamos no comportamento dos (as) brasileiros, como se sua responsabilidade terminasse no dia da eleição.

 

O tecnicismo, prática defendida na prática e com freqüência, aparece quase que discretamente. “Às vezes, aplica-se uma técnica desprovida de seus fundamentos, de sua filosofia, de sua eclesiologia e mística e dá-se a isso o nome de planejamento participativo”. É a tentação tão tentadora de pesquisar planejamento só no google e achar que é especialista em planejamento participativo e ou estratégico. Confunde-se dinâmica com mística, técnica com método, coerência com conveniência. “O planejamento participativo é mais uma pedagogia em contexto do que uma técnica de planejamento aplicável não importa em que campo e de que forma”. (Pg. 75). Para ser participativo deve ser mais consultado o grupo. É necessário que a participação seja efetiva e em todo o processo. “Para ser participativo, não deve haver participação no primeiro e nos demais passos, mas também fazem-se necessárias algumas  condições prévias da parte de todos”. A participação não pode, portanto, ser apenas para legitimar processo. O método participativo não pode ser resumido a adereço. “Tem alma, que precisa ser a alma de todos, sob pena de transformar-se numa experiência sofrida e conflitiva e, o que é pior, sem continuidade”. (Pg. 77).

 

O planejamento participativo exige certa conscientização de todo o coletivo, se não o processo pode parecer massa de manobra. “Por isso as Pessoas que vão participar dele devem, pelo menos, qual ‘e o ideal e estar dispostas a caminhar naquela direção. (...). O planejamento participativo quer ser a conjugação do EU com o NOS. Não existe comunidade só de NOS e sem EUS, como também não existe comunidade conformada pela superposição de EUS que não desembocam num NOS”. (...) O processo por mais bem desenhado que seja e por mais assegurados que estejam aqueles recursos, esta fadado ao fracasso, se as pessoas que farao  parte dele não estiverem aptas ou dispostas para assumi-lo”.(Pg. 78).

 

Fazer o que diz:

 

Fator importante é estar convencido daquilo que se faz ou se pretende fazer. Muitas vezes nossos discursos nada têm que ver com o que nossas práticas dizem. Se tenho que dizer: minha metodologia é freireana; minha ação é revolucionária; eu sou democrático; ou ainda: eu sou cristão; acredito no diálogo como instrumento de libertação, entre tantas inúmeras outras situações, é porque eu não estou sendo nada daquilo que digo ser.  E as pessoas percebem. “Como promover um processo participativo, se não estou convertido para a comunhão e o diálogo e se não busco ter um comportamento democrático?” (...) “Só os auto-suficientes saem os mesmos de um processo participativo”. (...) ‘Pois o diálogo implica não só a disponibilidade em escutar, mas também a ousadia de auto-revelar-se, além da coragem de discordar”. (Pg. 80). As palavras fazem a sua parte, nos dizem muitas informações, mas é a nossa prática, sobretudo a nossa postura, quem dão atestado de idoneidade de nossas palavras. Se elas são palavras verdadeiras, corporificadas por nossas ações, coerentes com elas, ou se são palavras ocas, vazias sem utopia.

 

“Evitar o conflito é fugir do diferente e do novo”. (Pg. 81)

 

Grande parte de nossas energias é gasta tentando acomodar as situações e fugir dos conflitos. Muitas vezes mostrar que eu tenho razão. Que eu estou certo. A minha verdade é maior. O problema é que eles não fogem de nós. Quando ele se avoluma, normalmente, vem como uma avalanche sobre nós e nos destrói. Destrói sonhos, relações, projetos e até vidas. De nada adianta está coma a razão. “A unidade passa pelo conflito através de uma espécie de não-violência ativa, enquanto a uniformidade, ainda que passe por uma aparente discórdia é sempre uma violência ativa, consentida ou imposta”. Quando agimos a partir de vaidades, nos conformamos com as técnicas. Quando agimos a partir utopias, vamos, além disso. “A técnica em si é fria, não tem poder de persuasão e mobilização. É apenas um instrumento a serviço de um fim que a supera infinitamente”. (Pg. 81). Se ficamos na técnica, ficamos na fala, na resignação e não nos indignamos, agimos.

 

O desafio que se nos impõe na educação popular, sobretudo na avaliação, no planejamento participativo, na gestão compartilhada, é vivenciar a paciência impaciente. É o saber caminhar com. “Evidentemente, quem está atrás tem o dever de apressar o passo, mas também é necessário que quem vai à frente tenha a caridade da espera, o gesto do Cirineu que ajuda outros a carregar cruzes, às vezes mais pesadas que a sua”. (Pg. 85). A pressa, às vezes a afobação, o ativismo, a militontice, é um inimigo constante de nossa caminhada. “Nada mais contraditório em um processo participativo do que a manipulação de pessoas, o jogo duplo de conchavos de bastidores”. (Pg. 86). Constitui-se grande desafio superar, nas relações entre nós, a cultura do, “uns mandam e outros obedecem”. Uns planejam e outros executam. Uns fazem e outros avaliam. “Aos primeiros responsáveis, participar não deve significar ‘pontificar’, mas tomar parte ativa nas discussões, expondo seus argumentos e persuadindo os participantes a aderir à sua posição, se for o caso, pela evidência dos argumentos, e não pelo argumento de autoridade”. (...) “O maior é quem se faz menor, é quem serve a verdade, que nos liberta a todos, a começar do autoritarismo”. (...) “Fora disso, qualquer orientação não passa de um cego guiando outro cego”. (...) “A autoridade não está acima da comunidade, mas em seu seio, a seu serviço”. (Pg. 88). Sem autoridade, sem liderança, não pode haver processo de libertação. O perigo é ver a autoridade caricaturada de autoritarismo. Por isso, a autoridade para fazer crítica exige engajamento, participação. “É muito fácil ficar julgando e decidindo de fora”. (Pg.89).

 

Os recursos financeiros para garantir as atividades, muitas vezes nos trazem mais problema do que solução. São geralmente um campo de disputas, de interesses e de discórdias. É comum ouvirmos de lideranças autoritárias disfarçadas, de democráticas, que “gestão é poder”. O que se esconde covardemente por trás dessa verdade merece nossa atenção. “Não é justo que os próprios participantes, além de emprestar os seus talentos, ainda venham a privar-se de seu necessário para custear viagens, estadias, material de trabalho etc.”. (Pg. 90). É um ato de auto-revelação. Indiretamente ela está dizendo que pedagógico, político, acolhida, comunicação, etc. não são poder. Além de revelar uma visão dicotomizada do processo. Está estacionada no “ou, ou” e desconhece ou combate o “e, e” como método de trabalho. A liberdade dos outros, para estas lideranças, é sempre um abuso. “Se Deus respeita a liberdade de consciência de cada um, fundados em que poderíamos agir de modo diferente?” (Pg. 92). Fora da liberdade só pode haver opressão e dominação. Não pode haver avanços, antes, há retrocesso.

 

A democracia nos exige habilidades nem sempre por nós desenvolvidas ou até despertadas. Por isso, não são poucas as exigências para se viver uma relação democrática. “Em todo caso, desde o início deve haver transparência, um jogo aberto e sincero, para que as decisões sejam sempre responsáveis e conseqüentes”. Aqui, aparece outro elemento perigoso. A pressa. O tempo é o principal e primeiro parceiro de um processo de libertação. “Quanto ao calendário, há o perigo da pressa, de queimar etapas, sobretudo quando o objetivo do processo não é elaborar um plano, mas pensar a ação”. (Pg. 94). Assim, repetindo a mesma idéia sem ser repetitivo, trazer presente a possessividade, aparece no jogo pobre e empobrecedor do esconde, esconde. Eu tenho sempre uma informação guardada, para na hora que eu julgar necessário, dar as cartas e mostrar quem é o bom. Afinal de contas, o plano é meu. É meu, ou é do coletivo? ”O método, no planejamento participativo, não pode constituir um segredo do grupo de coordenadores e, pior, do grupo de assessores, pois o processo facilmente poderia ser manipulado”. (Pg. 95). Esse comportamento ainda é muito freqüente.

 

A escuta é fundamental e mesmo imprescindível, não apenas como argumento, mas como imperativo ético. Saber ouvir atentamente é saber olhar a realidade também com o olho do outro. “Às vezes, pessoas que acompanham o desenvolvimento de dentro, mas que, ao mesmo tempo, estão de fora e têm melhor preparação teórica ou mais experiência, podem dar uma contribuição imprescindível”. (Pg. 96). Não basta repetir como papagaio as palavras de Dom Hélder Câmara: “Tu me enriqueces se discorda de mim”. É necessário ousar vivenciá-las. Estamos vivendo um momento extremamente delicado de nossa curta história democrática. Onde a assembléia é resumida ao assembleísmo. Onde somar forças é confundido com medir forças e ganhar é falar mais, é impor suas idéias. “A assembléia é um organismo-chave do processo. Quando mal composta ou mal preparada, mais pode atrapalhar do que ajudar”. (Pg. 97) Assembléia precisa ser representativa, não pode, portanto, ser composta por meus ‘amigos’ ou por meu ‘grupinho’.

 

É comum ouvir ‘cada um ta fazendo uma coisa’, como se isso, por si só, fosse um desvio. O que determina a unidade de sonho do coletivo são os objetivos. “Aliás, diversas coisas podem ser feitas ao mesmo tempo, uma vez que o mais importante é que todos estejam perseguindo os mesmos objetivos, e não fazendo as mesmas coisas. Nisso consiste a unidade”. (Pg. 98). Como diz William Shakespeare, ‘não importa onde você está, mas aonde você quer chegar’. “O processo deve ter data previamente marcada para começar e para acabar, sob pena de ser indefinidamente proteladas tanto a largada quanto à chegada”. (Pg. 99). Ainda é freqüente a correria atrás de solução de problemas que seriam evitados caso houvesse planejamento. Outras vezes o que falta, também freqüentemente, é formação dos participantes. “Sem preparação dificilmente haverá processo, pois este depende, por um lado, da concatenação com outros processos em curso e, por outro, de ele próprio nascer processual, e não de forma estanque ou truncada”. (...) Num processo participativo, quem não teve oportunidade de participar das tomadas de decisão não tem nenhuma obrigação de participar de sua execução”. (Pg. 100).

 

Requisitos básicos para um planejamento eficaz:

 

Também ainda é freqüente copiar e adaptar, quase implantar, experiências que ‘deram certo’ em certo lugar, em situação diferente. O pior é quando chega o inevitável fracasso, ainda tem-se a coragem de culpar o grupo. Não deu certo porque lá o grupo é mais preparado, mais comprometido, etc. “Do ponto de vista pedagógico, há alguns desafios para enfrentar: recriar a metodologia, fazendo-a própria; superar o amadorismo; não queimar etapas; privilegiar o processo, e não os resultados; não copiar, antes ser original, inculturar”. (Pg. 101). (...) insistimos em que métodos não se transplantam, mas se criam e recriam. Ao transplantá-lo, pomos o processo em função dele. Ao recriá-lo, estamos pondo-o a serviço da ação evangelizadora, que tem nas pessoas suas protagonistas”.  (...) “Sem dominar o método, sem conhecê-lo por dentro, sem tê-lo experienciado, dificilmente sua recriação não resultará num empobrecimento seu”. (Pg. 102).

 

Quem chegar sozinho no lugar planejado, chega derrotado. Deixa muitos caídos à beira do caminho. Matou o processo. “Num processo participativo, os extremos são nocivos: os que ficam sozinhos, atrás, e os que avançam sozinhos na frente. É um paradoxo, mas, ao caminhar com todos, vai-se mais devagar, mas chega-se antes”. (Pg. 105). Esse é um importante alerta para quem usa a primeira pessoa do singular. Tudo é eu ou é meu, minha. Sem, de forma alguma, defender a alienação, a imersão no mundinho e o ilhamento com relação à realidade maior, é momento de lembrar a célebre frase de Tolstoi: “fale de sua aldeia e seja universal”. “Sem discernimento crítico, corremos o risco de ignorar o nosso próprio ninho. Ignorar a realidade não é necessariamente não ter visão da realidade, é também ter visão errônea ou equivocada dela”. (Pg. 111). O ser humano é o protagonista da ação no mundo. Ou não terá outro. A natureza, as empresas, sobretudo multinacionais, são culpabilizadas pelas tragédias do mundo. Quem é que interfere na natureza e administra as empresas? “As ações precedem as estruturas, tal como a missão precede a instituição, para a qual esta foi criada”. (Pg. 116). Antes das empresas já havia homens/mulheres e os homens/mulheres não podem mais ser vistos separados da natureza.

 

“Partindo da ação o planejamento precisa retornar a ação”. (Pg. 118)

 

Existem muitos projetos parados, engavetados, a espera da condição ideal. Muito se espera e se trava processos, até se interrompe, a espera da pessoa ideal, da pessoa certa para coordená-lo ou para executá-lo. “Ser humano ideal não existe. Por mais realista que se seja, ao desenhar o perfil da pessoa ideal para desempenhar determinada função, não se pode prever certos imprevistos ou certos limites, impossíveis de ser previamente contemplados”. (Pg. 117). Diz-se que um homem esperou cinqüenta anos para encontrar a mulher ideal, perfeita, para se casar. Quando a encontrou, fez festa e convidou amigos, mas ela também procurava o homem ideal, perfeito. E não era ele.

 

O ser humano ideal parece ser aquele com o qual agente constrói um processo, uma relação. Onde há confiança mútua, liberdade, cumplicidade e principalmente objetivos semelhantes. “O planejamento participativo quer ser, antes de tudo, um processo de pensar a cão – antes, durante e depois dela – e de tomada de decisão partilhada, já falamos da implicação pedagógica de privilegiar o processo que os resultados”. (Pg. 119).

 

A grande contribuição do professor Brighenti é nos despertar para alguns fatos e vícios, obviedades, é verdade, mas que passam batido no dia a dia. “Como se pode perceber, o diagnóstico é a conclusão do processo de apreensão da realidade, expressa num juízo comparativo entre o ‘como está’ e o ‘como deveria estar’”. (Pg. 125). Ainda nos desperta para a atualidade dos temas e das ações. “Podem até ser profundas respostas e boas perguntas. Mas como se trata de perguntas que ninguém mais faz, não servem para fazer história de salvação”. (Pg. 126). São perguntas mofadas, ultrapassadas, que não podem ter respostas atuais, que oxigenem o processo a ser desencadeado.

 

Considerações Finais:

 

As contribuições do professor Brighenti aos movimentos sociais, às lutas por justiça social e por liberdade, encampadas em tantos lugares e de tantas formas diferentes, é extraordinária. As obviedades que ele nos traz e que muitas vezes se quer as vemos, chegam a impressionar. O simples fato de nos lembrar que as pessoas precedem as entidades é significativo. Freqüentemente esquecemos até isto. Remete-nos a relembrar, principalmente, que, são as pessoas que formam essas entidades e instituições. Ainda, que essas entidades devem está a serviço das pessoas e não o contrário. Imperativo este também tantas vezes invertido. As pessoas é que são colocadas a serviço delas. Quase instrumentalizadas.

 

A relação temporal defendida pelo professor Brighenti, parece-nos tão obvia quanto ainda rara de se ver. Ter os pés no chão, na realidade, ter os olhos no horizonte, no futuro, mas ter a coragem de “sujar” as mãos. Agir concretamente. Viver o presente. Tratar diferentemente coisas que são diferentes. Privilegiar o processo sem “empurrar com barriga” as exigências imediatas. A práxis, AÇÃO, REFLEXÃO, AÇÃO, proposta por Paulo Freire, aqui para o professor Brighenti, é sinônimo de VER, JULGAR, AGIR, nas Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. E propõe, “VER” analiticamente, JUGAR teologicamente, pois se dirige à igreja e as pastorais, e AGIR pastoralmente. Planejamento não é o fim, mas um meio, não pode ser guardado na gaveta e esquecido. O que dar unidade a ação, nos lembra Brighenti são os objetivos, não as ações. Traz um conceito de participação que se perdeu no tempo. É mais que estar presente, que assinar a lista de presença, é tornar-se parte. É sentir-se parte. Especialmente a Rede de Educação Cidadã – RECID – com sua proposta ousada de vivenciar planejamentos participativos, avaliações processuais e permanentes, gestões compartilhadas, é oportuno ler as reflexões do professor Brighenti.

 

BRIGHENTI, Agenor. Reconstruindo a Esperança – Como Planejar a Ação da Igreja em Tempos de Mudança. PAULUS, 3ª Edição, 2000.

 

 

Brasília, 06 de Janeiro de 2010.

 

João Santiago – Poeta e Militante.

É autor do livro “Chuvas de Prata – Reflexões de um Poeta” – entre outros. À venda nas livrarias Curitiba.

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