Saúde, serviço e sentido - ser e não ser

SAÚDE, SERVIÇO E SENTIDO - SER E NÃO SER
 
            Tenho defendido há algum tempo, seja nas conversas que tenho mantido, nas discussões de que tenho participado, nos grupos que faço parte, e até nos textos que vez outra escrevo, que a SAÚDE, hoje, é um tema a ser posto no centro das discussões. SAÚDE só pode ser se for vista em sentido amplo, abrangente e que leve em consideração a totalidade da vida. A SAÚDE engloba a dimensão política, religiosa, espiritual e social humana. Não só a totalidade humana, o que mesmo assim, ela está longe de considerar. Assim, se queremos SAÚDE humana, esta não será possível sem a SAÚDE do planeta. Isto tem que ver com o conceito de SAÚDE adotado. A Igreja tem dado durante a história grande contribuição à SAÚDE, sendo em muitas situações e em determinadas épocas, quando não a única, a mais acessível possibilidade de SAUDE, sobretudo, para os pobres. Por isso podemos dizer a mais sensível às dores humanas.
Quando ouvimos palavras como enfermo, enfermeira, enfermagem, cuidado, educação, saúde, conforto, entre outros, temos a sensação clara de ouvirmos termos evangélicos, bíblicos eclesiais. E de fato o são. É importante o conceito porque dele depende a ação e o seu resultado. A SAÚDE tanto depende de uma educação de qualidade como define e conceitua essa educação. São, portanto, termos complementares. Como nos diz Bartolomeu Bennássar, “Educação para um saber total, a sensibilidade estética, e, sobretudo a afetividade madura capaz de dar-se, de compartilhar gozo e dor, de comprometer-se ativamente com uma práxis social, que se concretiza desde o próprio bairro até o nível planetário” (BENNÁSSAR, 2002, p. 384). A SAÚDE que, além de um tema de conteúdo ético, é também bíblico e nos remete a retomarmos o perfil de homem bíblico.
 
O homem bíblico é aquele que tem em suas mãos o destino da criação, que administra, gere, respeita e usufrui; não é o que a ocupa, devasta, domina, explora, conquista, usa e abusa. É o senhor-servidor-irmão, trabalhador, desfrutador, distribuidor justo, contemplador (BENNÁSSAR, 2002, p. 384).
 
                A SAÚDE não pode tratar o ser humano, homem e mulher, apenas como seres vivos e passiveis de adoecerem. É preciso admitir como pressuposto fundamental que o planeta está doente. Vivemos num planeta doente e numa sociedade adoecida. E um planeta doente, ainda mais quando ele é composto por uma sociedade também doente, produz alimentos e relações doentes. Nestas condições não pode haver ser humano sadio. Tenho dito ainda que a SAÚDE como tema político e social precede, por exemplo, a moradia. Esta, inclusive, é um dos requisitos básicos para que haja SAÚDE, no homem e na mulher, mas, sobretudo, na família. Para ter-se SAÚDE é preciso ter-se moradia digna, alimentação adequada, saneamento básico, trabalho, educação, liberdade política e religiosa. Ter SAÚDE, nesta reflexão, engloba e significa ter tudo isto. O professor Mario Antonio Sanches diz que,
 
Uma visão de ser humano elaborada por uma teologia que desconsidera a biologia torna-se uma especulação vazia. Uma biologia que desconsidera a religião apresenta um ser humano que se torna um ser fechado em si mesmo, angustiado, incompleto, incapaz de vislumbrar a plenitude e o sentido de sua própria existência, (SANCHES, 2004, p. 34).   
 
            Isto pode parecer periférico, mas se torna central por ter a ver com a relação Fé-Ciência. Relação fé-ciência que só pode ser se for dialética. Situação esta tão presente e tão conflituosa tanto nas religiões quanto nas escolas. Poderíamos, a partir da bola levantada pelo professor Sanches, dar início a um campeonato de bolas ao alto. Por exemplo. Uma educação que desconsidera o educando e sua comunidade, como sujeitos de seu aprendizado, não pode promover a SAÚDE; uma fé que se aliena, fechando-se em si e desconsidera a ação política, só pode trazer doença para seus praticantes; uma política que desconsidera a participação popular, a quem não interessa o que pensam seus cidadãos e suas cidadãs, é bacteriologicamente alienante e só pode levar á morte toda uma sociedade.
 Um conceito de SAÚDE que desconsidere as condições de moradia e saneamento e transporte limita-se à doença e ao remédio. Por isso é que a SAÚDE começa com uma decisão política, com uma política pública de diretrizes transparentes e participativas. Acontece na secretaria de SAÚDE, mas também nas escolas, nas Igrejas e nas famílias. Do contrário é “política” de doença, não de SAÚDE. As decisões não podem ser tomadas apenas ideologicamente. É preciso ter-se referenciais éticos, morais, políticos, e mesmo religiosos. Se não, e isso acontece até mesmo na sociedade civil, nos chamados, “Movimentos Sociais”, quando falta um referencial, qualquer sectário age sectariamente, impondo sua raivosidade, apenas para poder continuar sectário. Não existe assim SAÚDE na relação, nem no ambiente de trabalho, e a vida e as pessoas adoecem. Presenciei, vi e até já fui vitima deste tipo de niilismo existencial e de sentido. A medicina tem um alto potencial de salvação e cura, já que biblicamente os termos se equivalem, mas ideologicamente e politicamente ainda está doente e a serviço da doença do egoísmo, do lucro e permanece surda à dor e ao sofrimento de quem adoece e não pode pagar.
 Que falar sobre a medicina alternativa dos saberes populares? A cultura vigente diz ser ela inferior, mas não seria hora de rever conceitos, a exemplo do que diz o teólogo Hans Küng, “Nós, europeus, não temos nenhuma razão para nos considerarmos superiores, pois... de onde viemos? Também nós - por evolução – procedemos da natureza”, (KÜNG, 2004, p. 22). De onde vêm os princípios ativos que se tornam remédio e salvação nos laboratórios? Onde nascem e vivem as ervas e plantas que os contêm? Não vem da natureza, o mesmo lugar de onde vem à sabedoria das benzedeiras, raizeiras e curandeiras (os)? E tudo isto não vem de graça da natureza? Aqui se fere o princípio bíblico que diz, “de graça recebestes, de graça daí”, (Mt 10,8).
A SAÚDE tem que ver, nesta reflexão, com a felicidade humana, que não tem preço, que não pode ser medida financeiramente, e que é o maior propósito de Deus. Por isso, como diz Adolphe Gesché, “Quer se creia, quer não em seu vocabulário ‘desusado’, a fé, a religião e a teologia falam, no fundo, da felicidade; do sentido do sentido; do sucesso e do insucesso da vida; e até, por isso, têm a audácia desejante de falar da vida eterna”, (GESCHÉ, 2005, p. 84). Quando a Igreja fala de SAÚDE, está falando, portanto, de felicidade. É, sobretudo, nesta ótica, partindo deste importante pressuposto, que se faz profética, salvífica e oportuna a Campanha da Fraternidade deste ano. 
“Fraternidade e Saúde pública”, com este tema, se torna impossível aos olhos, não vêem nas filas ainda de madrugada, nas calçadas das Unidades de Saúde o desrespeito a um dos Direitos Humanos fundamentais. Fica impossível aos ouvidos não ouvirem as inúmeras histórias reais e atuais contadas nas próprias filas, nos pontos e dentro dos ônibus, no portão das escolas e das creches – para aquelas mães que conseguiram vaga – impossível não sentir e pensar nos sofrimentos a que são submetidos milhões de brasileiros e brasileiras. De todas as idades. Agendar uma consulta com um especialista ou um exame especializado é quase tão difícil quanto conseguir efetivamente ser atendido. O lema, “que a SAÚDE se difunda sobre a terra”, (Eclo 38,8), tem tom exclamativo, profético, sugere não ser suficiente dizê-lo com a boca apenas. É preciso dizê-lo com as mãos. Lembra-nos o lema da Campanha da Fraternidade de 1968, “Crer com as Mãos”. Será igualmente impossível aos cristãos, ficarem de mãos cruzadas? Este é o ponto fundamental. Adoecer faz parte não apenas dos seres humanos, mas de todas as formas de vida. Todo ser vivo é passivo de adoecer e de sentir dor. Este não é o problema primeiro e central.como lembra D’Assumpção,
 
Achados arqueológicos demonstram que as doenças já existiam desde os primórdios da humanidade. Entretanto, as primeiras estavam ligadas essencialmente às condições de vida de nossos ancestrais. O Homem de Neanderthal, que viveu de cerca de 120.000 até 30.000 a. C., apresentava doenças nutricionais, artrite e sinais de traumas, (D’Assumpção, 2010, p. 43).   
 
            O novo não é o adoecer, também não é isto o que nos deixa indignados, mas o novo e o que deve deixar qualquer cristão indignado é saber-se com tantas possibilidades de cura-salvação e ao mesmo tempo impotentes e expostos às doenças mais antigas e erradicadas em tantos paises. Algumas até aqui mesmo. Temos profissionais competentes, tecnologia e técnicas eficientes e eficazes, mas as políticas públicas não cumprem o que garante a Constituição Federal. Tantas vezes e para tantas pessoas esta é a não tão sutil diferença entre ser e não ser. Servir é, ao mesmo tempo, neste caso, um termo político, já que temos os servidores públicos da SAÚDE, e um termo teológico de grandeza maior. “(...) Pois aquele que é o menor entre vós, este é que é o maior” (Lc 9, 48). A SAÚDE, então, é fruto de um ato de amor e Deus é que é o amor.
 
Na perspectiva da fé cristã, temos a certeza e nutrimos a convicção de que Deus é amor, e onde existe amor aí está Deus, a vida se afirma e a saúde é uma realidade palpável. Mesmo na morte, existe vida! O investimento tem que ser feito no amor, desde o âmbito individual até o sóciopolítico, que adquire nome de justiça, equidade e solidariedade no âmbito dos povos. O amor é importante para a saúde humana. A descoberta de Deus se faz nesta direção e não existe evidência maior de Deus do que o amor (PESSINI, 2008,  p. 61).  
 
            A escola assim como a Igreja apesar de ter papeis diferentes, são igualmente importantes na educação como um todo, mas de forma especial, na educação para a SAÚDE. Assim, em sintonia com Léo Pessini, reiteramos que Deus é amor e a SAÚDE uma questão de justiça. “Esta perspectiva norteia as novas Diretrizes Gerais da Ação Pastoral. Ela é condição para que, na Igreja, aconteça uma conversão pastoral que a coloque em estado permanente de missão (...)” (T Base, p. 11). Tendo como Objetivo Geral, “Refletir sobre a realidade da saúde no Brasil em vista a uma vida saudável (...)” (T. Base, p. 12), conclama a todos e todas para crer com as mãos e lutarmos como Igreja para que a SAÚDE se difunda sobre a terra. Para isto a Igreja nos faz lembrar que já temos a Pastoral da Saúde e que ela é, “A pastoral da saúde é a presença e a ação, em nome de Jesus Cristo Salvador, de um ministério de relação de ajuda, específico, entusiasta, encarnado, preparado, esclarecedor, celebrativo e organizado” (BAUTISTA, 2000, p.37). Este é o convite da Igreja na Campanha da Fraternidade de 2012. Que toda a Igreja seja uma grande Pastoral da Saúde. Como nos diz em seguida, na mesma página, Bautista, “Tem por finalidade proporcionar saúde-salvação: cura, assistência, libertação, reconciliação, sentido de vida, crescimento humano, salvação” (BAUTISTA, 2000, p. 37).
            Oxalá, a Igreja escute suas próprias palavras, busque a conversão necessária, assuma plenamente a sua missão de educadora na fé. Quando a Igreja assume profeticamente uma causa, ela tem uma força que os inimigos da vida não conhecem, mas temem. Sua causa é, a priori, a vida, e a vida com SAÚDE, com fraternidade e com amor.
            Religião é SAÚDE e se a religião adoece, faz adoecer também seus fiéis. E a religião adoece principalmente quando se fecha em si mesma, interna-se no leito da neutralidade política e divorcia a fé da política. Dizíamos anteriormente que todo corpo vivo adoece. Assim, sendo o corpo humano uma das dimensões da vida humana, ele não adoece sozinho. É através do corpo que expressamos nossos sentimentos, desejos e buscas. Dores e gozos também. É através do corpo que sorrimos e choramos. Inclusive as emoções da alma. Nossa espiritualidade, nosso estado de humor e o nível de nossas relações sociais. Os antigos, nossos ancestrais, sabiam melhor o lugar de cada coisa. Como nos diz o Texto Base, “Neste contexto, consideravam que não é só o corpo que adoece, nem só a medicina que cura, o que conferia grande importância aos ritos religiosos para a salvação do adoentado”, (T. Base, p. 14).  
 
Algumas perguntas para provocar os nossos sentidos
            Algumas interrogações se fazem oportunas e necessárias neste momento em que a Igreja assume e nos convida todos e todas a assumirmos a luta pela SAÚDE. O que fizemos do debate e das conseqüências da Segurança Alimentar? É possível ao ser humano homem e mulher, seja qual for a sua idade, a sua etnia e a sua opção religiosa, ter SAÚDE não tendo alimentação sadia? É possível produzir alimento saudável tendo o solo e as águas contaminados com tantos venenos e agrotóxicos? Quais são os exemplos-testemunhos que nos dão as Igrejas e as escolas de alimentação saudável? E as nossas famílias?  Dedicamos a vida de uma geração inteira para colocar no papel – regulamentar em leis – os direitos humanos e sociais básicos, o que fazemos hoje para que estas leis saiam do papel e cheguem à prática? Que falta fazer para termos como centro das discussões e ações a SAÚDE, agindo preventivamente, e não a doença, agindo sempre para resolver problemas que poderiam ser prevenidos? O que queremos dizer ou dizemos, quando dizemos, SAÚDE!? O que nos move são as perguntas. Quando perguntamos, queremos explicações. Quando somos perguntados, ficamos sempre inquietos. Não tem jeito. Mesmo quando figimos o contrário, as perguntas nos fazem inquietos. É este o sentido pedagógico de nossas perguntas. 
            A pergunta mais revolucionária que já fomos capazes de formular é também a primeira que aprendemos fazer. Por quê? É esta a pergunta que sempre fizeram as crianças e que continuam fazendo. Os adultos normalmente têm vergonha de fazê-la, sobretudo, em público. Mudar a cultura comportamental, trocar o medo pela fé, é a grande e urgente tarefa nossa neste momento histórico. Principalmente a cultura do silêncio e da acomodação. Quem espera sentado, espera demais! Teologicamente temos que assumir o compromisso com a causa de Jesus. “Eu vim para que os homens tenham vida e a tenham em abundância”, (Jo 10,10), disse ele. Certamente a Igreja hoje deve dizer, “Para que todos os homens e todas as mulheres tenham a vida e a tenham em abundância”. Portanto, com os pés no chão da vida, o coração cheio de amor pra dar e o olhar no horizonte, SAÚDE!
 
Curitiba, 09 de Fevereiro de 2012.
 
João Santiago. Teólogo, Poeta e Militante.
Mestrando em Teologia pela PUCPR.
É da equipe de assessores da CF 2012 da
Diocese de Curitiba.
(41) 9865-7349 - TIM     
 
 
Para aprofundar esta reflexão sugiro estas referências bibliográficas:
 
- BAUTISTA, Mateo. O que é pastoral da saúde? São Paulo: Paulinas, 2000.
- BENÁSSAR, Bartolomeu. Ética civil e moral cristã em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2002.
- BIBLIA Sagrada – TEB – Tradução Ecumênica.  
- CNBB. Texto Base - Campanha da Fraternidade de 2012.  
- D’ASSUMPÇÃO, Evaldo A. Sobre o viver e o morrer. Petrópolis-RJ: Vozes, 2010.
- GESCHÉ, Adolphe. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2005.
- KÜNG, Hans. Religiões do mundo – em busca dos pontos comuns. Campinas-SP: Verus Editora Ltda., 2004.  
- PESSINI, Léo. (org.). Buscar sentido e plenitude de vida. São Paulo: Paulinas, 2008. 
- SANCHES, Mário Antonio. Bioética. – ciência e transcendência. São Paulo: Loyola, 2004.